Aqui há dias abro o meu email e deparo-me com esta prenda - uma aluna que se afincou a usar a IA para me retratar na aula. Aluna de dez anos, note-se. Fartei-me de rir com as piadas que a imagem tem (logo a começar pelo meu ar sóbrio e responsável, a anos luz da minha barba hirsuta e t-shirt geek debaixo do casaco, mas isso é o primeiro sintoma óbvio dos enviesamentos da IA generativa). Tenho de as explicar. Não, a aluna não se enganou, o professor está mesmo a segurar uma raposinha ao colo em vez da expectável cadela.
Não é uma raposa qualquer, é uma Salta-Pocinhas, referência ao trabalho com que finalizámos o primeiro período, sobre o elementar do processamento de texto tendo como texto base alguns excertos da obra clássica de Aquilino Ribeiro, que são um gosto de ler em voz alta às turmas (podem não aprender muito comigo, mas pelo menos sabem porque é que são fagueiros). O martelo com cara de gato é a outra piada.
Sou aquele professor horrível que nas aulas os obriga a guardar o rato na mochila e usar o trackpad, porque se não o fizer não aprendem a usar este componente e arriscam-se a crescer e ficar como aqueles adultos que vejo a torcer os pulsos com o rato em cima do chassis do computador, dizendo que não lhes dá jeito usar o trackpad e o rato é mais confortável (não é alucinação, é algo que vejo recorrente com estes olhos que a terra há de comer). Uma das consequências da minha horribilidade é o ar de surpresa generalizada quando descobrem o deslizamento nas páginas com dois dedos ou os toques para menu de contexto, geralmente acompanhados de um coro de "não sabia que se podia fazer isto". Para os assustar, aviso-os que qualquer rato que veja na sala irá conhecer o meu gato - um esmagador martelo com olhinhos.
Só não percebi a origem das luvas. Mistérios dos algoritmos.
Percebi que a miúda se esforçou imenso para conseguir a imagem que queria, com todos os alunos com o seu computador. Variantes anteriores da imagem, que me mostrou, representavam a aula com o professor a falar e os alunos a contemplar cadernos. O aspecto geral da sala vem de algo que ela ainda não conhece, mas já lida no dia a dia, o viés algorítmico e a forma como os outputs destas ferramentas perpetuam estereótipos aprendidos no treino. Afianço-vos, no entanto, que não dou aulas em estrados, o que é uma felicidade, senão estaria constantemente a meter atestados médicos por acidente em serviço.
The street finds a way, recordo muitas vezes a frase de William Gibson sobre a forma não linear como as pessoas se apropriam de tecnologias. Fico sempre a matutar nisso quando vejo os meus alunos a usar geradores de IA para explorar as suas ideias, pela relativa facilidade com que inventam o inesperado. Até me conseguem transformar num professor de aspeto responsável e cenas.
