A memória prega-nos partidas. Recordo vagamente de, na infância ou adolescência, ter lido a história dos cegos que tinham de descrever um elefante. Já não a recordo nos seus detalhes, mas a imagem dos cegos a descrever de forma mirabolante uma criatura que nunca tinham conhecido ficou-me na mente. De tal forma que, quando comecei a preocupar-me em trazer a inteligência artificial para as aulas de TIC, pensei que seria uma excelente metáfora para que os alunos percebam as limitações e problemas dos algoritmos. Talvez não seja a metáfora mais rigorosa, mas encanta os meus meninos do 5º e 6º ano.
Sigo com algum teatro, imaginando como os cegos tocavam nas várias partes do elefante e as descreviam. "Uma corda grossa, cheia de nós", diz o que toca na tromba. "Ah, um ovo com bicos curvos", descreve o que toca na cabeça. "Então, mas isto são abanos", refere o que toca nas orelhas. Um apalpa a barriga do elefante e pronuncia "isto, parece uma pipa!" (e descobri que os meus alunos de hoje não conhecem o que é uma pipa ou um tonel, só percebem quando digo que é um barril, talvez um sinal da evolução da sociedade portuguesa, cada vez mais distante do seu passado rural). "Ah, parecem árvores", diz o que toca nas patas. Um, mais afoito, puxa pela cauda do elefante, sem que nada lhe caia em cima (risos imediatos quando as crianças percebem esta piada não muito subtil) e compara-a a uma corda com um espanador.
Claro que isto não é um elefante, discutimos. Mas todos percebem que os cegos tentaram o seu melhor, descreveram o elefante com os conceitos que conheciam. Ou, trazendo a experiência mais para perto do dia a dia dos alunos, explicaram algo de novo usando as palavras que conheciam. É um ponto de partida para explorar as redes neuronais, através de algoritmos Deep Dream e GAN, mostrando aos alunos como podem criar imagens usando estas ferramentas. E explicando, de forma simples, como elas funcionam, como dependem de modelos de treino, e como isso condiciona os resultados surpreendentes que nos dão. Poderei não estar a fazer isto da forma mais correta, ou cientificamente rigorosa, mas de certeza que os deixo a pensar sobre estas tecnologias.
Este vosso professor, visto pelo DeepDream. Esta imagem é descontração garantida na sala de aula. Nada como deixar um grupo de alunos de 14 anos, adolescentes irrequietos, quando uma experiência com a
Nvidia GauGAN lhes mostra uma foto de um lugar inexistente a ser criada em tempo real pela inteligência artificial. E os mais pequenos ainda ficam mais surpreendidos.
Ao fim de algumas aulas a falar de elefantes, decidi-me a ir pesquisar, para perceber se a história existia mesmo e não foi uma efabulação minha. A memória prega-nos partidas, momentos que pensamos ter vivido ou experienciado são algumas vezes algo que construímos na nossa mente. Não é o caso desta história, embora no seu original seja muito mais brutal do que na minha brincadeira com alunos. É uma parábola budista sobre preconceitos e a importância do conhecimento, com inúmeros níveis de interpretação, como estas coisas normalmente são. O que no entanto, não a torna menos apropriada para ser usada quando se fala de Inteligência Artificial. Afinal, um dos problemas éticos desta tecnologia é o enviesamento dos seus resultados por terem sido treinadas com conjuntos de dados problemáticos. O velho problema do garbage in, garbage out.
A meio de uma aula, lembrei-me que os problemas de representação advindos de erros de interpretação não são exclusivos das fábulas de origem budista. Em conjunto com os alunos, pesquisámos sobre representações medievais de elefantes, sabendo que os monges copistas não eram especialmente viajados e trabalhavam a partir de descrições livrescas, que muitas vezes não primavam pelo seu rigor. Descobrimos a deliciosa imagem que ilustra este artigo, claramente um esforço do ilustrador para representar o que leu sobre o aspeto de um elefante. Mas, desenhando o que sabia, acabou por ficar mais parecido com um cavalo com presas e uma tromba. Aqui, podem ver alguns exemplos ainda mais mirabolantes. Por entre os risos inevitáveis dos alunos, é importante sublinhar que estes erros não são o resultado da ignorância, mas sim da falta de conhecimento, e que, felizmente, evoluímos e estudamos cada vez mais o mundo que nos rodeia.