No evento final Probótica 2018, desafiaram-nos a participar numa conversa sobre clubes de robótica, partilhando a nossa experiência. Correu em modo de improviso, mas alinhavei as ideias gerais neste texto. A imagem a que faço referência não a publico aqui, respeitando a política de privacidade de dados do Agrupamento de Escolas Venda do Pinheiro, mostra o núcleo do clube a trabalhar nos seus projetos num intervalo entre aulas.
Esta é, para mim, a melhor imagem do clube de robótica do AE Venda do Pinheiro. São alguns dos alunos, completamente fora de horas, a frequentar o espaço do clube durante os intervalos. Este nível inesperado de autonomia e reforço de interações sociais foi, este ano, das experiências mais enriquecedoras de dinamizar um clube de robótica.
Tenho sempre a sensação que somos um clube algo atípico. Logo a começar pelo espaço onde trabalhamos. As atividades decorrem no Centro de Recursos, durante o seu funcionamento normal. Deveríamos ser um clube de robótica e programação, mas modelamos e derretemos filamento termoplástico, com os robots e os drones um pouco esquecidos. Salve-se a programação, que isto desde que os alunos aprenderam a fazer Pixel Art a programar a matriz de leds do SenseHat para Raspberry Pi, tem sido uma loucura visual. Mas não participamos em desafios Scratch ou Apps for Good.
Ainda. Lá chegaremos, espero. Porque antes de tudo o resto, temos de criar na nossa escola uma cultura de criatividade tecnológica. Esse foi o nosso verdadeiro desafio neste ano, o segundo ano formal do clube.
Não temos uma sala para nós. São as agruras de trabalhar numa escola sobrelotada. Mas queremos trabalhar na Biblioteca Escolar, há uma lógica por detrás disso. A professora bibliotecária do Agrupamento foi uma das vítimas colaterais da nossa incursão na criatividade digital. Tornou-se ainda mais fanática por impressão 3D, programação e robótica do que eu, por estranho que isso pareça. A faísca está a pegar, penso, quando nos vemos obrigados a fazer engenharia financeira comprar caixas de robots para as bibliotecas dos estabelecimentos do primeiro ciclo.
Trabalhamos 3D e programação com tablets, para colmatar as falhas na acessibilidade a computadores e porque creio que temos de apostar na computação móvel. Em contextos mais formais, o poder computacional do computador tradicional, desktop ou portátil, é sempre o mais adequado, mas a portabilidade e capacidade dos dispositivos móveis está em expansão constante. No nicho específico do 3D, já é possível trabalhar em CAD a nível semi-profissional com um simples tablet android. Há que aproveitar o menor custo desta tecnologia, e tirar partido daquele dispositivo computacional que todos, nós e os alunos, têm no bolso.
Desenvolver atividades de clube de robótica na biblioteca não acontece só por questões de espaço. Montámos um pequeno espaço Maker no Centro de Recursos, onde os nossos alunos podem estar a desenvolver competências com o nosso arsenal digital. Os nossos alunos fazem serviço como monitores 3D e de tecnologias, estando disponíveis fora das horas do clube para ajudar os restantes utentes do Centro de Recursos a descobrir as tecnologias com que trabalham. Durante as sessões, o que fazem é visível para todos, despertando a curiosidade e tornando a tecnologia algo de acessível. A outro nível, aquele que a professora bibliotecária não cessa de me recordar, é um tipo de projeto que experimenta novas literacias no espaço da biblioteca.
Temos sido afortunados, contamos com dois computadores mais recentes do que os quase defuntos PTE, um Raspberry Pi (das melhores aquisições que fiz), impressora 3D, tablets, kits littlebits e robots de três tipos. Um espaço tornado possível pelo investimento dos prémios de Mérito da Rede de Bibliotecas Escolares. Não resisto a sorrir, ao recordar o ar de contentamento da nossa bibliotecária e sua coordenadora concelhia a escolher os móveis e decoração deste espaço. Eu mantive-me saudavelmente afastado das visitas ao Ikea, alegando que tinha de resolver problemas técnicos. Mas adorei o sorriso dos nossos alunos quando chegaram e viram o espaço composto. Especialmente quando descobriram os puffs.
Não somos um clube muito formal. Quando candidatos esperançosos perguntam como é que podem fazer parte, a regra é aparecerem nas horas do clube. Quando puderem, quando quiserem. Sem obrigações. Alguns vão e vêem, muitos ficam. Nunca sei ao certo quantos alunos frequentam o clube, mas sei que tenho um núcleo de vinte alunos que frequentam regularmente as sessões e usam o espaço nos seus tempos livres. Os mais novos são acolhidos e guiados pelos veteranos. São um grupo heterogéneo, do quinto ao nono ano, que nos acompanha nos eventos em que participamos.
Quem pertence a este clube, fá-lo porque quer mesmo. Porque se sente bem e aprende a desenvolver as suas ideias. Mas suspeito que o estar entre pares, a fazer amizades, é uma das principais razões desta constância.
Há que saber contornar as dificuldades organizacionais de uma escola que otimiza os horários dos alunos. Funcionamos à hora de almoço, para permitir a um grande número de alunos estar connosco. O tempo do clube rivaliza com outros interesses, e por vezes sobrepõe-se a horas de apoio pedagógico.
A informalidade do clube e o seu espaço de trabalho são também problemáticos. Nem sempre é fácil desenolver projetos sustentados neste tipo de condições. Melhorar esse aspeto é o grande objetivo do próximo ano. Neste, criámos um núcleo e uma cultura. Agora temos de a fazer crescer.
Gosto de chamar ao grupo os Misfits. Um grupo de crianças com interesses e dinâmicas diversas, que encontra no espaço Maker da biblioteca um ponto de encontro entre iguais. Onde tem à disposição diferentes maneiras de se exprimir com tecnologia, entre 3D printing, kits de eletrónica, robots, drones ou programação. Cada um tem a sua cena, e vai aprofundando ao seu ritmo e interesse. Mais do que encarrileirar numa direção, preferimos disponibilizar e orientar. Dar a faísca, tentar criar condições. Eles, estes fantásticos e fantásticas Misfits, fazem o resto. E se acham que é mau apelidá-los de Misfits, reparem: onde é que estes meninos gostam de passar os seus intervalos?
We're all stories in the end, just make it a good one, como diz o Doctor Who. Nós, professores, gostamos das histórias que as recordações dos nossos alunos. Poderia contar a daquele aluno problemático, ao nível de saúde mental, cuja diretora de turma o retirou dos apoios educativos para frequentar o nosso espaço. Ao fim de umas sessões sem participar em nada, disse-lhe que não estava a resultar e saiu do grupo. Algumas semanas depois vem ter connosco, e pede-me "professor, pode-me ensinar a fazer porta-chaves em 3D?" Não só se integrou no grupo, como se tornou dos mais ativos.
Falando em apoios educativos, recordo uma conversa azeda que tive com a diretora de turma de um outro aluno, que queria que eu metesse na ordem num aluno que estava a faltar aos apoios para frequentar o clube. Não gostou muito da minha opinião de que provavelmente estaria a desenvolver trabalho mais útil enquanto membro do clube do que nos apoios, e muito menos quando lhe expliquei que o espírito do clube é informal. Mas fiz o reparo ao aluno. Semanas depois, regressou. Quando lhe perguntei se estava a faltar a aulas de apoio, disse-me "não, estudei, esforcei-me, melhorei as notas e deixei de precisar de ir a estas aulas". É o meu gestor de impressão 3D.
As últimas semanas do clube, este ano, foram marcadas por dois problemas gravosos. Foram relatados por um dos alunos, que sendo mais velho se sentia responsável pelos colegas. Estava preocupado, com ar de realmente apoquentado, enquanto me relatava situações problemáticas. Disse-me que um aluno que tinha saído do clube por comportamentos inadequados entrava à socapa na biblioteca da escola e usava a impressora 3D para imprimir objetos seus. Fiquei sem saber se ficava chateado ou contente. Se por um lado este aluno estava a usar o espaço indevidamente, por outro, mostrou-se capaz de o fazer em autonomia.
O outro acontecimento gravoso envolveu puro empreendedorismo. "Sabe, o XXX está a aceitar dinheiro para imprimir coisas. Ele faz e imprime para os outros, disse-me o meu preocupado aluno. Novamente, fiquei indeciso. Deveria ficar irritado ou contente? Falei com o jovem empreendedor e parece que para o ano temos uma solução para ajudar a adquirir filamento.
Quando deixei uma impressora 3D ao abandono nas mãos dos alunos, não era bem estes os resultados que esperava. Afastar-me e deixar os alunos tomar conta da máquina foi algo que tive de me forçar a fazer. Só intervi em caso de entupimento grave, ou
troubleshooting quando eles não conseguiam resolver os problemas por si sós. A princípio temi o pior. Temi alunos hospitalizados com queimaduras graves do extrusor ou uma máquina bastante cara irremediavelmente irreparável. O ano terminou com a máquina em excelentes condições, um grupo de alunos em auto-aprendizagem acelerada, e muitas bobines de filamento vazias.
Sou professor, e por isso metodologias muito livres causam-me alguma relutância. O instinto de guiar e orientar é muito forte. Entre a falta de foco na programação e robótica e o informalismo das sessões, ficava com o sentimento de que os alunos não estavam a aprender e desenvolver as suas competências da melhor forma. Um anacronismo, bem sei, da parte de quem sempre sublinhu aos alunos que as sessões do clube não eram aulas. Tive a prova que de facto aprenderam e desenvolveram ideias na última semana de aulas. Uma equipa da Beeverycreative esteve connosco a filmar um case study sobre impressão 3D na educação, com depoimentos dos alunos. Quando estes me perguntaram o que teriam que dizer nas entrevistas, disse-lhes que falassem do que sentiam. Não os treinei com declarações feitas. E quando falaram, frente à câmara, caiu-me o queixo e encheu-se o coração. Mesmo os mais novatos mostraram que aprenderam muito mais do o que eu imaginava.
Podemos não ser grande coisa a programar e mexer em robots. 3D é a nossa principal área de intervenção, muito por minha culpa. Mas ao longo deste ano um grupo crescente de jovens entusiasmados teve oportunidade de desenvolver livremente as suas capacidades nestas áreas, partilhou experiências com os colegas e descobriu o que se pode fazer em eventos. Mais importante do que isso, criaram laços fortes de cumplicidade que ultrapassaram idades, turmas e anos de escolaridade. Este lado humano, das relações que se criam, sinto que é o mais enriquecedor da experiência de dinamizar um clube de robótica.
E também ajuda passar pelos corredores da escola com um qualquer artefato tecnológico e ouvir os alunos a comentar "
lá vai o stor de robótica fazer coisas fixes". É uma curiosa evolução, para quem começou por ser professor de artes.