Uma visão diferente da Sala Félix Ribeiro, na Cinemateca. Estar lá não para ver filmes, apesar do dia ter terminado com uma sessão de cinema, mas a ouvir falar sobre cinema e educação. Foi a segunda conferência do Plano Nacional de Cinema, com o tema
Entre Espaços: a Escola e o Cinema. Reunidos no espaço da Cinemateca estavam muitos dos professores que, nas escolas, desenvolvem actividades no âmbito deste projecto.
Ainda sinto como inquietante ver um representante do ministério da educação a falar a professores, e concordar com o que diz. Traumas dos últimos oito ou nove anos de dirigentes ministeriais. Registei o interesse reflectido nas palavras de João Costa no potencial das artes na educação, até agora tão desperdiçado e desconsiderado. Já o tinha registado em discursos similares que ouvi em encontros ligados às tecnologias na educação. Pessoalmente não tenho ilusões que, tão cedo, se consiga quebrar a pedagogia dos exames, com todas as consequências negativas que traz a um sistema de ensino que se foca nos resultados a curto prazo e deixa de ter tempo para pensar na formação alargada dos alunos. Pelo menos, o discurso oficial deixou de ser o da exigência e rigor de vista curta e está a abrir-se à diversidade de experiências, a uma visão integral da educação, e aos desafios da complexidade de preparar os alunos de hoje para um amanhã imprevisível.
A conferência de abertura foi um momento de prestígio, com Maria Emília Brederode e Guilherme d'Oliveira Martins a partilhar o seu amor pelo cinema, artes e educação. Ajudaram a mostrar a importância de alargar horizontes, de não reduzir a aprendizagem ao utilitarismo, mas, essencialmente, partilharam as suas paixões nestes domínios. É que realmente nos cativa.
No painel seguinte, os cineastas Luís Filipe Rocha, Margarida Cardoso e Pedro Serrazina, moderados por Jorge Leitão Ramos, discutiram a importância do Plano Nacional de Cinema na formação de novos públicos e estímulo à cultura. Preocupou-me o tom conservador do debate, muito centrado numa visão do que era o cinema e do que eram os alunos. Tom esse que, refira-se, já tinha sido aludido na sessão de abertura, com a directora do ICA, ao falar sobre o digital, a registar que
devemos combater estes novos meios, porque o cinema deve ser visto em sala de cinema. Uma frase que me preocupou, dando a entender que os responsáveis pelos financiamentos e políticas culturais vêem os novos media como uma ameaça e não nova vertente de actuação. Fechar-se e combatê-los como ameaça não os fará desaparecer, mas pode colocar em causa o futuro das organizações que assim procederem.
Deste debate, saliento o tom questionador de Luís Filipe Rocha, que soube contrapor a um certo conservadorismo uma visão de mudança. Perante questões como o deficit de atenção dos alunos de hoje, a dispersão multi-plataformas, ou a promoção de públicos, falou da questão do interesse e do papel da escola na formação de gostos culturais. Sobre isto, algumas notas: a questão do défice de atenção parece-me demasiadas vezes ser levantada por saudosistas de bons velhos tempos em que as crianças podiam estar distraídas, mas mantinham-se num silencioso respeito interpretado como atenção. Se é que alguma vez isto foi assim. No que toca à formação de públicos, apontada no painel como desastrosa, pergunto-me exactamente que públicos pretendem. Tenho tido a experiência oposta, visitando festivais de cinema que esgotam as sessões, ou participando em festivais culturais que não só atraem público jovem como dependem em larga medida de núcleos culturais dinamizados por jovens. Talvez esta questão da formação de públicos tenha, de certa forma, com a formação de públicos para um certo tipo de cinema privilegiado pelos meios culturais portugueses, com a sua clássica rejeição de culturas de género ou produtos mediáticos que não se enquadrem numa visão erudita mas restrita. Poderia recordar o caso do cineasta António de Macedo, que se fizesse o tipo de filmes que caracterizou a obra de Manoel de Oliveira ainda hoje faria cinema, mas que por preferir temas desprezados pelos responsáveis pelos financiamentos estatais se viu forçado a deixar de filmar.
Os discursos conservadores costumam encontrar terreno fértil em agregados de professores. Fale-se em catástrofes porque os jovens de hoje não têm a cultura de antigamente, ou que são desatentos e inquietos, e logo se vê um coro de cabeças a acenar em concordância. Pessoalmente, não creio que estas questões sejam assim tão lineares. Vejo o entusiasmo dos meus alunos com literatura ou filmes, ou os dos grupos de
cosplayers e jovens criadores que enchem eventos. Não é um entusiasmo com o gosto cultural tido como desejável, mas é entusiasmo gerador de cultura. Por outro lado, dietas mediáticas exclusivas em culturas de género não são saudáveis. Perde-se a riqueza do confronto de perspectivas, gostos e visões. Duas questões concordo inteiramente: o papel da escola como espaço de formação de gostos, não por imposição mas por exposição, e a inevitabilidade da sala de cinema enquanto espaço privilegiado para se perceber o real impacto desta forma de arte. Hoje, podemos ver filmes em múltiplas plataformas, momentos e dispositivos. Ainda bem. Democratiza, permitindo o acesso a obras esquecidas, raras, ou com pouco interesse comercial. Mas o acto de ver cinema tem muito de social, de isolamento do real num espaço físico concebido para fruir desta arte. É algo que não escapa aos estúdios nestes dias de fragmentação. Suspeito que o ressurgir dos filmes de Ficção Científica, ou os de aventura, com a sua promessa de grande espectáculo só verdadeiramente perceptível em grande ecrã, se deva a isto. Vertentes que o Plano Nacional de Cinema incentiva nas suas acções.
À tarde, coordenadores do PNC de três escolas participantes partilharam as suas iniciativas e metodologias. Este foi o momento mais proveitoso, de um ponto de vista utilitário, do congresso, permitindo analisar como outros implementam o projecto nas suas escolas, como conseguem a adesão dos professores e alunos, apoio das direcções e entidades locais, o que fazem efectivamente. Saí desse momento com algumas ideias e, mais importante, as colegas que me acompanham nesta aventura, para a qual tenho muito pouco tempo, saíram cheias de ideias (temos um acordo de cavalheiros, motivado pela gestão de tempo: elas desenvolvem actividades, eu assino, dou a cara, mas nunca me esqueço de as creditar e reforçar que quaisquer actividades desenvolvidas são possíveis graças ao seu empenho).
Um congresso sobre educação e cinema só poderia terminar com uma sessão de cinema. Aproveitando a iniciativa da Cinemateca das
double bill ao sábado à tarde, assistimos aos filmes
La France de Serge Bozon, e o clássico
Casablanca de Michael Curtiz. Por razões eminentemente
g33k, sempre que me falavam em
double bill só me apetecia cantar o
Science Fiction Double Feature, que arranca o
Rocky Horror Picture Show (esse filme que mostra tão bem o como o cinema é enriquecido pela experiência social). Terminar o encontro com o mergulho na magistral textura cinematográfica de
Casablanca foi o melhor encerramento possível, um que faz sentir a real razão de todos os que estão envolvidos no Plano Nacional de Cinema se dedicarem a este projecto. A paixão, difícil de colocar por palavras, pela sétima arte.